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Lia Bock

Usar as redes para denunciar uma traição é legítimo?

Lia Bock

02/01/2020 04h00

iStock

Não é de hoje que as redes sociais vêm sendo usadas para fazer denúncias contra criminosos e pessoas com comportamento questionável. Desde arbitrariedades do sistema judiciário, até estupro, abuso e traição: tem de tudo nos textões que escancaram a vida privada. E claro que, neste mar de coisas, há desde injustiças sociais em seu último grito de esperança até a mais torpe das vinganças disfarçada de busca por reparo. Hoje vou me ater aos casos limítrofes que navegam na intimidade de um casal e não contém violência ou abuso. Aqueles que passeiam entre amantes, desonestidades e mentiras.

E como é difícil separar o joio do trigo nessa hora. O ex-marido que coloca a boca no trombone para falar da traição de anos da ex-mulher está errado? A moça que escancara os diversos casos de um homem casado que se dizia solteiro está certa? E mais: quanto alívio e quanta dor esses relatos podem trazer? O que fazer quando eles viralizam deixando de ser denúncias para virarem linchamento?

Não tem resposta fácil. Mas vale a discussão.

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O assunto me ocorreu depois que um meme sobre o caso do rapaz que teria assistido 11 vezes ao filme "Bacurau" ganhou os trending topics. A própria moça que deu início à denúncia negou a informação, mas já era tarde. Entre a piada e os fatos, a internet fica sempre com a piada. 

O mesmo aconteceu com o caso do marido traído. O texto que ele escreveu no calor da hora sobre a ex-mulher foi apagado na sequência, mas, uma vez online, pra sempre no mundo e daí para as homes dos portais e, claro, para os tribunais. 

O que quero ponderar aqui está fora da alçada da dor pessoal e do dano que a pessoa causou. Porque este pode, de fato, ser gigante, nos dando todas as ferramentas e justificativas para jogar a história no mundo. Mas será que a internet está aí pra isso? Será que todos os casos de traição e sacanagem amorosa merecem ser jogados aos leões? O quanto isso alivia nossa dor e o quanto pode causar mais problema? 

É impossível controlar a onda que a internet cria com os elementos que jogamos nela. Por isso, é preciso ter em mente que fazer uma postagem de "denúncia" sobre uma traição fala muito mais sobre nós do que sobre o traidor em questão.

Gente que tem amante, que mantém perfil no Tinder se dizendo solteiro, mas é casado, que namora diversas pessoas ao mesmo tempo e se diz perdidamente apaixonado por todas elas e outros tipos de estelionato amoroso é o que mais tem no mundo.

Alguns casos são imaturidade pura, outros resvalam no comportamento doentio. Mas a verdade é que, infelizmente, vivemos uma era de hipocrisia nos relacionamentos. Ninguém quer falar de casamento aberto, ninguém quer decretar a falência da monogamia e muitos preferem as palavras bonitas da negação a encarar a realidade dos fatos. E isso merece virar pauta. Precisamos mesmo nos debruçar sobre essa dissimulação amorosa, mas questiono se isso deve ser feito apontando o dedo para esta ou aquela pessoa. 

A tentação de jogar o nome de quem quebrou nosso coração na internet é real. E falemos a verdade, muitos de nós temos histórias com potencial de destruição sumária de ex-namoradas, amantes, maridos e afins. E claro que a vontade e nossos motivos aumentam quando aparece um amante tão longevo quanto o casamento ou seis namoradas e uma esposa em uma rede complexa de envolvimento. Mas mesmo assim me pergunto se a internet aberta é o fórum adequado para a discussão ou se não seria apenas palco para a mais cruel das vinganças.

E vejam, não botar a boca no trombone das redes não significa de forma alguma perdoar, relevar ou fazer vista grossa para o ocorrido. De jeito nenhum. Tem muita gente brigando na Justiça. Tem muita gente que perdeu amigos e família. Porque quando o laço quebrado com o parceiro é o da dignidade, isso não parte só o coração do cônjuge, parte o desonesto ao meio, criando uma dissidência profunda em todas as suas relações sociais.

E, pra isso, a gente não precisa de "denúncia" na internet. A gente precisa de rede de apoio e conversas sinceras. A gente precisa de olho no olho e ajuda para juntar os cacos. 

O que quero dizer é que o marido traído por mais de dez anos pode ter toda razão, assim como a moça que foi enganada pelo rapaz que se dizia solteiro e apaixonado. Mas, quando jogam essas histórias nos textões e tuítes desse mundão, os argumentos dão lugar ao vazio das opiniões supérfluas de terceiros jogando não apenas o traidor na jaula dos leões, mas também a nós mesmos e todos aqueles que estão em volta, como filhos, pais e eventuais outros envolvidos. 

Talvez não seja exagero dizer que essas denúncias sobre traição sejam uma espécie de justiça com as próprias mãos, aquele tipo de coisa que a gente morre de vontade de fazer, mas se segura porque sabe que, ali adiante, isso nos leva ao caos.

E aqui é importante dizer que não estou passando a mão na cabeça de desonestos, traidores e psicopatas amorosos em potencial. De jeito nenhum! Mas jogar a história nas redes pode causar uma inversão de papéis, colocando aquele que causou tanto dano no papel de vítima. E não nossa vítima, mas do mundo, porque do clique em diante são milhares de juízes, cada um com seu método de atuação agindo para condenar o traidor. É o que chamamos de linchamento virtual.

E quando o sacana vira vítima, convenhamos, não é bom pra ninguém.

Por maior que tenha sido a desonestidade amorosa, usar as redes para fazer uma denúncia deve ser muito bem ponderado. O que queremos com isso? O que essa denúncia pode causar? Existem outros  meios de atuar com contundência? E principalmente: vale a pena? Vamos discutir, sim, abrir fóruns, ler Regina Navarro, mas isso não tem nada a ver com justiçamento em praça pública. 

Sobre a autora

Comentarista na CNN Brasil, a jornalista Lia Bock começou a blogar em 2008 no site da revista "TPM", onde foi também editora-chefe. Passou por publicações como "Isto É", "Veja SP" e "TRIP". É autora dos livros "Manual do Mimimi: do casinho ao casamento (ou vice-versa)” e do "Meu primeiro livro", ambos editados pela Companhia das Letras. É mãe de quatro filhos e pode ser encontrada no Instagram @liabock e no Twitter @euliabock

Sobre o blog

Um espaço para pensatas e divagações sobre notícias, sexo, filhos, coração partido, afetações apaixonadas e o que mais parecer importante ao universo feminino.

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