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Lia Bock

As feministas e a destruição de valores

Lia Bock

17/08/2018 04h00

(iStock)

Dia desses dei de cara com um comentário intrigante para um texto publicado neste blog. Não costumo ler ou me abalar com os comentários ofensivos. Mas este foi diferente. Primeiro porque não era um ataque verborrágico e nem trazia aquelas ofensas da quarta série que passam por 'recalcada', 'feia' e 'mal amada'. O comentário foi quase respeitoso, apesar de ser equivocado. Mas foi a prepotência que me moveu a respondê-lo publicamente.

Vulgo, mexeu com meus brios e trouxe muito do que precisamos entender sobre o que ele chama de "as feministas". Vamos ao comentário:

"Um dia as feministas descobrirão que não passam de ferramenta dos que 'trabalham a destruição de valores' – todos os valores. A velha máxima de 'dividir para governar'".

A forma como ele se coloca como detentor de uma verdade invisível ao olhos das ingênuas (ou seriam burras?) feministas é um exemplo translúcido de algo que costumamos ver por aí: homem tentando explicar pras gurias (feministas ou não) porque elas estão erradas. Só faltou aquele "querida, deixa eu te explicar", que geralmente vem antes desse tipo de frase. Vocês já pensaram que, talvez, as mulheres pensem aquilo que disseram mesmo? Talvez elas tenham embasamento para isso e, talvez, o fato de você discordar não signifique que ela está errada. Mas só talvez.

Depois vem a parte dos valores. Querido Fulano, você tem toda razão! O que as feministas querem é justamente destruir, trucidar e esmigalhar valores construídos socialmente em um tempo onde a mulher era propriedade do homem, não tinha direito a voto e se não sangrassem na noite de núpcias eram devolvidas para o pai, dentre outras coisinhas. Os tempos mudaram e por isso precisamos "destruir" alguns valores para que floresçam outros. Mas também não precisa generalizar. Não é porque queremos autonomia sobre nossos corpos e o fim (por exemplo) do "valor" de que a mulher deve ser submissa ao seu marido, que queremos também acabar com a ética (um valor) ou com o respeito à vida (outro valor).

Então anota, só queremos acabar com os valores que reduzem, desrespeitam e agridem as mulheres. Tá? E hoje está muito fácil entender o que queremos e porque queremos, já que, infelizmente, temos visto exemplos nítidos do que isso significa. Quando um homem se sente no direito de matar a mulher porque ela quer o divórcio, isso fica bem claro. Quando entidades religiosas usam argumentos nada palpáveis para dizer que a vida da mulher vale menos que a do embrião, também fica claro porque a resistência é necessária. Novos valores, para novos tempos.

E claro que isso incomoda. Mexer em valores é mexer em privilégios. É assumir que há do outro lado gente pensando diferente de nós e que é preciso respeitá-las.

Agora, a parte em que você diz "A velha máxima de 'dividir para governar'", não ficou muito clara pra mim. A famosa tática de guerra, como definiu Maquiavel (dividir para conquistar/reinar), consiste em fragmentar os adversários para ganhar batalha. Aqui entra um ponto importante. O feminismo tem diversas correntes e lutas, mas isso não significa que há alguém plantando essa fragmentação para sufocá-lo. Ele nasceu assim. São muitos feminismos.

Soa reducionista pensar que o movimento das mulheres está sendo manipulado para que perca a batalha. Seria mais honesto dizer que, talvez, se abandonassem algumas causas os movimentos poderiam ficar mais fortes. Mas, a verdade, é que no momento, nenhuma causa parece desnecessária ou menos urgente.

Finalizo dizendo que seu comentário, aparentemente ético e inteligente, mostra como temos muito o que avançar.

 

 

 

Sobre a autora

Comentarista na CNN Brasil, a jornalista Lia Bock começou a blogar em 2008 no site da revista "TPM", onde foi também editora-chefe. Passou por publicações como "Isto É", "Veja SP" e "TRIP". É autora dos livros "Manual do Mimimi: do casinho ao casamento (ou vice-versa)” e do "Meu primeiro livro", ambos editados pela Companhia das Letras. É mãe de quatro filhos e pode ser encontrada no Instagram @liabock e no Twitter @euliabock

Sobre o blog

Um espaço para pensatas e divagações sobre notícias, sexo, filhos, coração partido, afetações apaixonadas e o que mais parecer importante ao universo feminino.

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