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Lia Bock

Por que devemos invejar a Irlanda, o país católico que legalizou o aborto

Lia Bock

30/05/2018 04h00

(iStock)

A Irlanda é um país católico. Estima-se que 78% de sua população seja seguidora do Papa Francisco. Pois, nesta na última sexta-feira, essa mesmíssima população foi às urnas e aprovou, num referendo e com quase 70% dos votos, a legalização do aborto. Ficou translúcida a insatisfação com a legislação antiga.

Isso sozinho já seria um motivo gigantesco para invejarmos o país. Mas vou mais longe.

O que motivou a onda de ativismo e a mudança de pensamento de muita gente foi a morte de Savita Halappanavar, em 2012. A dentista indiana, habitante da Irlanda, morreu de infecção generalizada depois que os médicos se recusaram a cuidar dela devido à legislação do país. Ela estava grávida de 17 semanas e, como ainda havia batimento no coração do bebê, os médicos disseram que, por lei, não poderiam intervir. Savita foi obrigada a voltar pra casa e passar por um aborto espontâneo.

Este processo durou uma semana e no final, matou a mãe.

A população se chocou com o caso e se deu conta do absurdo da lei que regia o assunto no país. Deu-se então o início de uma empreitada de luta que durou seis anos e acabou na sexta-feira, com a mudança da lei.

É isso que devemos invejar.

No Brasil, quando uma mulher morre por consequência de um aborto ilegal o que vemos são pessoas dizendo coisas como "teve o que merecia" pra baixo. Percebem o abismo da diferença? Somos pautados pela mais escrota lógica do castigo e da punição. Enquanto sociedade somos incapazes de nos solidarizarmos com quem pensa diferente de nós. E isso é triste demais, principalmente quando vidas estão em jogo.

Porque vejam: não foi uma mudancinha na lei que agora permite que casos como o de Savita sejam prontamente atendidos e nem a inclusão de aborto para casos de anencefalia ou risco para a mãe (como temos no Brasil, depois de uma luta árdua). Na Irlanda, a partir de agora, quem decidir que não quer levar a gravidez adiante tem o respaldo da lei para fazer um aborto.

Eles foram de um extremo a outro porque perceberam que 1) faz aborto quem quer, não é uma obrigação, é uma opção, 2) não vale a pena botar as mulheres em risco em nome de um embrião que não pode nem ser chamado de feto (ainda) e 3) oferecer esta possibilidade não abala a fé e a crença de ninguém.

Quando uma mulher decide que não pode, não consegue ou não quer levar uma gravidez adiante devemos ouvi-la e respeitá-la, não importando se concordarmos com ela ou não.

É isso que eu invejo. Essa maturidade. Esse respeito pelo outro.

Será que conseguiremos chegar lá algum dia?

 

Sobre a autora

Comentarista na CNN Brasil, a jornalista Lia Bock começou a blogar em 2008 no site da revista "TPM", onde foi também editora-chefe. Passou por publicações como "Isto É", "Veja SP" e "TRIP". É autora dos livros "Manual do Mimimi: do casinho ao casamento (ou vice-versa)” e do "Meu primeiro livro", ambos editados pela Companhia das Letras. É mãe de quatro filhos e pode ser encontrada no Instagram @liabock e no Twitter @euliabock

Sobre o blog

Um espaço para pensatas e divagações sobre notícias, sexo, filhos, coração partido, afetações apaixonadas e o que mais parecer importante ao universo feminino.

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