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Gordofobia: Vídeos preconceituosos fazem mais mal às crianças do que bala

Lia Bock

09/06/2020 04h00

(iStock)

Nutrição digital: o problema não é ser gordo é propagar a gordofobia

Fui apresentada ao termo "nutrição digital" pela minha amiga psicóloga e educadora parental Mariana Costa. Achei muito interessante e, hoje, pra falar de obesidade, ele vem bem a calhar. Nutrição digital é tudo aquilo que a gente consome na internet e o efeito desse conteúdo em nós. Se "responsabilidade digital" é cuidar do que a gente posta (principalmente quem tem muitos seguidores), nutrição é cuidar do que a gente consome.

Pois, da mesma forma com que nos preocupamos com o que entra pela boca dos nossos filhos, precisamos nos preocupar com o que entra por wifi. Com o desafio de que o que vem pela internet é bem mais complexo e cheio de pegadinhas. E é nos canais ditos infantis onde mais vemos esse tipo de conteúdo traiçoeiro.

Numa olhada rápida e genérica, muitos dos vídeos podem parecer apenas bobos e inofensivos, mas, com um mergulho mais profundo, vemos que há muita coisa ali bem questionável. Conceitos deturpados, exposição exagerada de crianças e preconceitos dos mais variados tipos sendo vomitados de forma natural. E sabe o que acontece quando as crianças assistem a conteúdos que naturalizam preconceitos? Eles os absorvem de forma orgânica e, em pouco tempo, começam a reproduzi-los. É assim com conteúdos homofóbicos e gordofóbicos. 

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Por causa de uma forte luta LGBTQ+, os homofóbicos têm se resumido a piadinhas rápidas e expressões que (ainda) teimam em aparecer na boca dos neomachinhos. Mas com o conteúdo gordofóbico o buraco é bem mais embaixo: existem vídeos inteiros que depreciam, tiram sarro e fazem caricaturas grotescas sendo reproduzidos como se isso fosse muito normal. 

São vídeos como esse da Maria Clara & JP, por exemplo, que tratam o gordo como burro, bobo, preguiçoso e que "só faz abdominal se for para alcançar um donut imaginário". Tudo no vídeo é bizarro, inclusive o fato de o menino se entupir de comida na frente da televisão e emagrecer em poucos minutos de "exercício" com a irmã, que fica na posição da magra salvadora e ainda tira sarro dele o tempo todo. 

Tenho certeza de que o vídeo não foi feito na maldade, e a intenção de conscientização existiu em algum momento, mas o resultado não só não esclarece a real importância de se alimentar de forma saudável e ser ativo, como estimula de forma aguda que as crianças tenham preconceito com pessoas gordas. Além disso, cria um pânico em torno dos hábitos alimentares que não é compatível com a idade das crianças em questão. 

Outro exemplo de péssima influência tem mais de um milhão de visualizações no YouTube e está no canal Laurinha e Helena – Clubinho da Laura. Ali, é a mãe que se entope de forma caricata de comidas industrializadas sendo socorrida pela filha para aprender a "ser saudável".

Um filtro horroroso é usado para retratar a mãe quando está gorda e seu choro reclamando da barriga inchada pela almofada e dizendo "ela me avisou" coloca mais uma vez as pessoas gordas como burras e as magras como salvadoras. Mais uma vez conceitos como "doce faz mal" são propagados ao léu. Vejam, não é porque falamos as coisas em tom de brincadeira que seus problemas desaparecem. Ao contrário, a coisa pode ficar ainda pior! 

É muita desinformação tachar os doces como vilões. É muita desinformação dizer "será que vou voltar ao normal?". Por favor, defina normal. E, neste caso, ainda vai mais longe: depois de se entupir de tudo que é coisa, a mãe é "obrigada" a comer frutas! Gente, fruta faz super bem, mas em cima de um monte de comida, não, tá? Fora que acaba trazendo o conceito de que o saudável é remédio, algo que descabela até os estudantes de nutrição do primeiro ano. 

E, assim, dando risada e fazendo piadinha, nossos filhos vão sendo alimentados com um conteúdo preconceituoso que em nada ajuda a formação dos cidadãos conscientes que tanto queremos que eles sejam. 

Fazer conteúdo infantil nunca foi simples. Nos tradicionais canais de televisão, isso sempre envolveu uma equipe especializada além dos profissionais de criação. Mas, de repente, nossos filhos estão sendo nutridos por conteúdos irresponsáveis e extremamente superficiais feitos por crianças ou famílias sem pedagogia nenhuma e, pior, muitas vezes detentoras de posições educacionais, políticas e éticas bem duvidosas.

Se você é do tipo que não deixa seus filhos se "entupirem de doce", mas esquece de monitorar o tablet, fique atento. Eles podem estar se entupindo de vídeos que fazem muito mais mal do que um saco de bala. 

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Sobre a autora

Comentarista na CNN Brasil, a jornalista Lia Bock começou a blogar em 2008 no site da revista "TPM", onde foi também editora-chefe. Passou por publicações como "Isto É", "Veja SP" e "TRIP". É autora dos livros "Manual do Mimimi: do casinho ao casamento (ou vice-versa)” e do "Meu primeiro livro", ambos editados pela Companhia das Letras. É mãe de quatro filhos e pode ser encontrada no Instagram @liabock e no Twitter @euliabock

Sobre o blog

Um espaço para pensatas e divagações sobre notícias, sexo, filhos, coração partido, afetações apaixonadas e o que mais parecer importante ao universo feminino.

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