Perder o emprego durante a quarentena é como ser abandonado em alto-mar
Lia Bock
16/04/2020 04h00
Goto: Getty Images
Estava todo mundo trabalhando normalmente até que um dia veio a notícia de que era melhor fazermos home office. Até então ninguém estava entendendo a dimensão da pandemia. Todo mundo foi pra casa ainda achando que em duas ou três semanas estaria de volta. Ficaram sobre as mesas carregadores de celular, fones, agendas e pertences que alguns preferiram não sair pra pegar. "Já, já passa", pensaram. Pensamos todos.
Isso foi há cerca de um mês e, até agora, não há sinais de que vamos voltar ao escritório tão cedo. Bom, alguns não vão voltar para o escritório nunca mais. Nesse tempo foram demitidos, desligados ou suspensos até segunda ordem. Tudo depende do contrato de trabalho existente. Alguns até já trabalhavam de casa, mas há anos estavam a pleno vapor no que consideravam um trampo estável.
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De qualquer forma, a metodologia é parecida. Chega uma mensagem perguntando: "Você pode falar?". E quando o chefe pergunta se a gente pode falar é mau sinal.
E daí, em uma estranha ligação telefônica, ficam sabendo que, por motivos de problemas financeiros, contenção ou outro cálculo apocalíptico qualquer, estão sendo desligados da empresa. Eles e muitos outros – fazem questão de dizer como se o fato de ser algo coletivo amenizasse alguma coisa. Talvez amenize, impossível saber.
Mas fato é que não dá pra buscar as coisas, nem pra chorar no ombro dos colegas. Não dá pra marcar uma saideira e nem recolher os arquivos acumulados em anos no computador. E, principalmente: mal dá pra reclamar. Porque o mundo está tão ferrado, está tudo tão absurdo e sofrido que a nossa dor em perder o emprego e o sustento parece sempre pequena perto da desgraça alheia, aquela que vemos todo dia nos portais e na televisão.
No mundo neoliberal em que vivemos, nos disseram que o mercado se regularia e que tudo daria certo sem a necessidade de recorrermos ao Estado. A gente até que acreditou, mas eles não contavam com fatores extremos como uma pandemia. E, nessa hora, a sensação é de estar sendo largado pela embarcação em alto-mar. Tudo a distância. Sem abraço, sem olho no olho. Eles lá em cima, no barco que tenta (sim, a duras penas) se manter navegando e o ex-funcionário em baixo, solto na imensidão das ondas. Os resignados apoiam os desesperados. Os positivos seguram as pontas dos catastróficos. Tudo virtualmente – haja WhatsApp.
A vibe da demissão em tempos de quarentena tem o mesmo tom da morte sem velório. É um desespero silencioso.
O medo da morte se mistura, então, ao medo do futuro. "O que vai ser quando a grana acabar? Quando vou conseguir um novo trabalho? Quem contrata em tempos de recessão? Se a ideia é um Estado mínimo, e as empresas não têm estrutura para esse maremoto, que embarcação vai me resgatar?". Difícil não entrar em pânico.
As perguntas se somam ao som da rotina diária, que, implacável, não espera ninguém se escalpelar. Os filhos chamam, a louça chama, a ida tensa ao mercado se faz urgente.
Para aqueles que estão isolados sozinhos é ainda pior. Alguma coisa grita de forma muda dentro da cabeça vazia. Parece ter algo surreal no ar. O porre de despedida é solitário e sair da cama vira uma tarefa árdua. Pra que levantar?
Sim, porque de repente aquele mundo de trabalho para fazer a distância e aquele monte de reunião por Skype deram espaço a um nada incômodo. Se na tensão do momento já estava difícil ler um livro ou assistir a uma série, imagina depois de ser demitido?
O mundo está um caos, crise financeira, doença, morte, isolamento e agora esses cidadãos têm também que lidar com o efeito psicológico da demissão. E ele sempre vem: "por que eu? Por que agora? Por que assim?". Que ecoam na cabeça se alternando com os sentimento de autopiedade e autopunição.
E então percebemos que ter um trabalho e uma renda não é apenas ter grana e uma ocupação, é também o fio de sanidade que nos facilita a rotina e a ordem no meio do pandemônio. Ter um trabalho é fazer parte de um coletivo neste momento marcado pela solidão.
Não ter mais aquela função nos joga na vala das estatísticas e na cruel imensidão de nossas cabeças vazias. Se está difícil pra quem tem renda e home office, imagina pra quem foi ejetado do sistema em plena turbulência?
Sobre a autora
Comentarista na CNN Brasil, a jornalista Lia Bock começou a blogar em 2008 no site da revista "TPM", onde foi também editora-chefe. Passou por publicações como "Isto É", "Veja SP" e "TRIP". É autora dos livros "Manual do Mimimi: do casinho ao casamento (ou vice-versa)” e do "Meu primeiro livro", ambos editados pela Companhia das Letras. É mãe de quatro filhos e pode ser encontrada no Instagram @liabock e no Twitter @euliabock
Sobre o blog
Um espaço para pensatas e divagações sobre notícias, sexo, filhos, coração partido, afetações apaixonadas e o que mais parecer importante ao universo feminino.