"Dia do Orgulho Hétero" e a vergonha de fazer parte deste time
Lia Bock
30/06/2020 04h00
(iStock)
A hashtag #OrgulhoHetero passou a segunda-feira (29) em primeiro lugar nos trends do Twitter. Antes das pessoas com bom senso e disposição para argumentar com quem fala bobagem entrarem em cena e fazerem da hashtag um lugar engraçado e indignado, o que se viam eram memes e postagens com os mesmos argumentos cansados que já vimos tantas vezes.
Não sei se o pessoal tem inveja da alegria festiva da comunidade LGBTQ+ ou se realmente tem medo de uma possível "ditadura gay", como eles mesmos chamam. Mas, cada vez que me deparo com esse tipo de argumento, me dá uma vergonha danada da minha orientação sexual. Imagina se eu saio de mãos dadas com meu marido e alguém pensa que sou dessas? Deus me livre ser confundida com esse tipo de gente que se orgulha de ser hétero e quer um dia para celebrar o amor que só vale pra uns.
Tem que ter muita raiva no coração e titica de galinha na cabeça pra achar que se tem Dia do Orgulho LGBTQ+ tem que ter Dia do Orgulho Hétero também. Isso parece coisa de criança mimada que acha que pode ter tudo na vida. Fora a falta de informação e leitura básica. Ninguém cria um dia do orgulho de alguma coisa porque quer. As pessoas fazem isso porque precisam, porque estão sofrendo, porque a sociedade as empurra para a sombra. Criam para ocupar espaço e brigar por respeito.
Pra quem não sabe, o Dia do Orgulho LGBTQ+ foi inventado para marcar um episódio de perseguição à comunidade em Nova York. Foi a necessidade que puxou a celebração. O grito era por um basta à repetida violência policial contra gays, lésbicas e transexuais que frequentavam o bar Stonewall Inn, com ápice no dia 28 de junho de 1969.
A primeira parada do orgulho LGBTQ+ aconteceu em Nova York no ano seguinte. E ainda se faz necessária porque, nesses 50 anos, não conseguimos (enquanto sociedade) tratar as pessoas de forma igualitária. Se aqui no Brasil vemos mulheres trans e casais homoafetivos serem agredidos e assassinados nas ruas, em alguns locais da África e da Rússia leis que criminalizam o ativismo e os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo seguem existindo. Ou seja, ainda não conseguimos.
Agora pensemos porque raios a gente precisa do tal Dia do Orgulho Hétero? Vamos rememorar aqui os argumentos de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara e autor de dois infelizes projetos neste tema –um para criar o tal dia e outro para criminalizar o preconceito contra heterossexuais. Segundo Cunha, em 2015, a ideia era "resguardar direitos e garantias aos heterossexuais de se manifestarem e terem a prerrogativa de se orgulharem do mesmo e não serem discriminados por isso".
Mas, gente, vocês já viram hétero ser retirado de restaurante? Já viram alguém olhar feio porque um casal hétero estava se beijando no mercado? Já viram alguém esconder da família que é hétero por medo de ser posto pra fora de casa? Isso me lembrou uma esquete do canal DR Oficial. Ali, numa realidade invertida, héteros passam por tudo que os LGBTQ+ passaram e passam até hoje. Pois os argumentos que sustentam essa ideia sempre me lembram esse vídeo.
E, pra gente não achar que essa ideia é nova (de 2015 pra cá), vale lembrar que em 2005 o então prefeito de São Paulo Gilberto Kassab vetou o projeto de lei 294/2005, do vereador Carlos Apolinário (DEM), que instituía na cidade o Dia do Orgulho Heterossexual. Sim, o projeto tinha sido aprovado pela Câmara Municipal.
Tendo em vista a insistente repetição dessa ideia, só me ocorre que os héteros têm mesmo é inveja das festividades LGBTQ+. Deve ser difícil ver tanta gente se amando de verdade e celebrando o amor e não poder se juntar por medo de… medo de quê mesmo? De virar purpurina? De dar uma fraquejada? De viver num mundo onde se amar é mais importante do que agradar os outros?
Vergonha de ser hétero define.
Sobre a autora
Comentarista na CNN Brasil, a jornalista Lia Bock começou a blogar em 2008 no site da revista "TPM", onde foi também editora-chefe. Passou por publicações como "Isto É", "Veja SP" e "TRIP". É autora dos livros "Manual do Mimimi: do casinho ao casamento (ou vice-versa)” e do "Meu primeiro livro", ambos editados pela Companhia das Letras. É mãe de quatro filhos e pode ser encontrada no Instagram @liabock e no Twitter @euliabock
Sobre o blog
Um espaço para pensatas e divagações sobre notícias, sexo, filhos, coração partido, afetações apaixonadas e o que mais parecer importante ao universo feminino.