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Querer acabar com a pornografia é como querer acabar com as drogas

Lia Bock

29/05/2019 04h01

(iStock)

"A pornografia tem que acabar pois é uma forma de escravidão sexual", afirmou a socióloga inglesa Gail Dines em entrevista. Rapidamente ela ainda sugere uma forma de se fazer isso: "O caminho seria tirar qualquer dinheiro envolvido para que essa indústria parasse de lucrar e acabasse". Super simples. Só que ninguém até hoje conseguiu.

A indústria da guerra às drogas vem tentando acabar com o "mal" exatamente dessa maneira há décadas, e o máximo que conseguiu foi lotar as cadeias com a turma da ponta do iceberg. O que, claro, favorece os mais desonestos e quem manda mesmo na parada.

Pois com o pornô é a mesma coisa. Propor a extinção da maneira como Gail sugere soa ingênuo e simplista. Primeiro porque já sabemos que não basta proibição para acabar com as coisas e segundo porque jogar no mesmo balaio iniciativas éticas e práticas violentas é o mesmo que misturar esgoto com água potável. Ou seja: a técnica mais rápida para aumentar exponencialmente o esgoto é perder justamente a parte que era pura, boa para consumo.

Pra ficar na analogia das drogas: é o mesmo que botar na (mesma) clandestinidade traficantes armados até os dentes e a família que compra canabidiol para aliviar a doença do ancião. Não resolve e só turva a parte real do problema.

A pornografia de fato deturpou e ainda deturpa muita gente por aí. Quando a família se omite na educação sexual, a escola se esgueira para longe do assunto e a internet está no bolso de todos, o resultado é que com cliques a esmo jovens e crianças trazem para dentro de casa (mesmo das mais íntegras e abençoadas) o pior do sexo. E não é um amiguinho mais safado que fala bobagens. Não. São filmes que pregam a submissão da mulher, que estimulam a violência e glamurizam "ninfetas" que poderiam ser as nossas filhas menores de 12 anos.

Sim, porque quando a gente não fala de sexo, o hard porn de fácil acesso fala por nós.

É por isso que eu acho a visão da socióloga um pouco ultrapassada. Uma visão que não leva em consideração a cultura, os hábitos e a história da humanidade. Uma visão tão romântica quanto equivocada do potencial humano de fazer merda – mesmo quando não pode.

A pornografia faz parte de nossas vidas. Depois da popularização de câmeras, falar em extinção é quase um delírio. E tenham certeza, quanto mais tirarmos o dinheiro do setor, mais as mulheres serão exploradas. Eu não duvido que se esse dia de veto total chegasse, mulheres começariam a ser escravizadas para produzir conteúdo lixo.

A pornografia está entre nós, faz parte de nós (ok, de uns mais e outros menos, mas digo nós no sentido social) e jogar na clandestinidade só fortalece quem sempre esteve no comando, abusando de mulheres, remunerando mal e passando uma visão totalmente equivocada do que é sexo.

Porque se foi possível influenciar de forma errada toda uma geração com encenações grotestas, podemos influenciar também mostrando uma pornografia real, parecida com a que praticamos em casa, uma pornografia com amor, com gozo pra todo mundo e sem violência. Uma pornografia que remunera direito seus atores ou então mostra o que as pessoas com corpos e desejos reais estão fazendo. Sim, porque muito da pornografia que se faz por aí é caseira, feita por puro exibicionismo. O problema é que muitas delas são totalmente contaminadas com essa visão de pornô violento que dominou o mercado por tantos anos.

Então, Gail, me desculpe. Mas vocês tiveram uma vida para "acabar" com a pornografia. Agora que tem gente (em sua maioria mulheres!) entrando pro jogo e mostrando que dá pra fazer diferente, não vai dar pra te apoiar. #FicaPornografia #PornografiaJusta #SexoReal.

Links para quem quer se aprofundar:

Entrevista com a criadora do Make Love Not Porn, Cindy Gallop (Revista TPM)
Entrevista com a produtora de filmes pornôs Erika Lust (Revista Marie Claire)
Entrevista com a diretora Albertina Carri (Hysteria)
Texto da diretora Livia Cheibub (Hysteria)
Reportagem sobre pornografia feminista (BBC)
Texto da diretora do Sexlog Mayumi Sato (Universa)
Entrevista com professora Mariana Baltazar (Hysteria)

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Sobre a autora

Comentarista na CNN Brasil, a jornalista Lia Bock começou a blogar em 2008 no site da revista "TPM", onde foi também editora-chefe. Passou por publicações como "Isto É", "Veja SP" e "TRIP". É autora dos livros "Manual do Mimimi: do casinho ao casamento (ou vice-versa)” e do "Meu primeiro livro", ambos editados pela Companhia das Letras. É mãe de quatro filhos e pode ser encontrada no Instagram @liabock e no Twitter @euliabock

Sobre o blog

Um espaço para pensatas e divagações sobre notícias, sexo, filhos, coração partido, afetações apaixonadas e o que mais parecer importante ao universo feminino.

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