Medo em série: a solidão do silêncio oculta criminosos
Lia Bock
06/04/2019 05h00
(iStock)
Quando uma mulher sofre um abuso, seja ele cometido pelo guru espiritual, pelo tatuador ou um namorado, é comum que sinta uma solidão imensa e tenha a sensação de que é a única vítima. A vergonha e o medo dão o tom e não por acaso muitas se calam frente o despreparo dos órgãos responsáveis por acolher denúncias e o receio de se expor ao falar do caso. Não raro, muitas se sentem culpadas e se perguntam o que fizeram para aquilo acontecer. Esse é o modus operandi que nossa cultura e nossa sociedade nos proporcionam.
Quando casos como o de João de Deus ou do tatuador Leandro Alves Pereira vêm à tona, fica claro de que não, não estamos sozinhas e de onde saiu esse abuso, ou até mesmo esse assédio, provavelmente saíram muitos outros.
Não se cale, mulher
O que precisamos agora é ter isso em mente e enfrentar nossos medos e a sensação de solidão. Não que seja necessário fazer um post nas redes sociais, muita gente não gosta dessa exposição e não há nenhum problema nisso, mas vale a pena ter coragem de conversar com amigas, colegas, especialistas e pessoas de sua confiança que convivam com este abusador para encontrar casos semelhantes. Tirando raras exceções, vai ser fácil de encontrar.
Um chefe que assedia uma funcionária provavelmente já fez isso com outras subordinadas. Um guru que toca de forma indevida. Um namorado que violenta. Um médico, um professor, um massagista, um tatuador, um fotógrafo (pra ficar entre os tipos que vimos na mídia recentemente) que abusam devem ter uma lista enorme de queixas silenciadas pelo medo e pela sensação de "foi só comigo".
Não, não foi só com você. Parta sempre do princípio oposto, de que foi com todas e, até que se prove o contrário, pense que o abuso ali é algo recorrente.
Juntas somos mais fortes
Este pensamento dará força e coragem para a procura de ajuda e de outros casos de semelhantes. E, acredite, quando aparecer outra mulher (ou outras) como uma história parecida o alívio de "não estar louca", "não estar sozinha", "não ser a única" e de "não ter feito algo para incitar aquilo" será muito acalentador.
Muitas vezes achamos que nossas vozes solitárias não serão fortes o suficiente para enfrentar uma pessoa que, muitas vezes, tem poder, grana e fama. Mas quando somamos vozes, quando nos percebemos parte de um ciclo criminoso repleto de mulheres, a coisa muda de figura. Nunca a fase "juntas somos mais fortes" fez tanto sentido.
Lembre-se que Roger Abdelmassih já foi o especialista em fertilização mais famoso e queridinho do país. Lembre-se que João de Deus foi um líder espiritual midiático, cercado de personalidades e bajulação internacional. Se eles caíram, os outros também podem cair.
Hoje existem diversas redes e coletivos que acolhem e orientam mulheres. Confie nas suas amigas, na sua rede e não deixemos que um abuso em série seja vendido pelo medo em série.
Sobre a autora
Comentarista na CNN Brasil, a jornalista Lia Bock começou a blogar em 2008 no site da revista "TPM", onde foi também editora-chefe. Passou por publicações como "Isto É", "Veja SP" e "TRIP". É autora dos livros "Manual do Mimimi: do casinho ao casamento (ou vice-versa)” e do "Meu primeiro livro", ambos editados pela Companhia das Letras. É mãe de quatro filhos e pode ser encontrada no Instagram @liabock e no Twitter @euliabock
Sobre o blog
Um espaço para pensatas e divagações sobre notícias, sexo, filhos, coração partido, afetações apaixonadas e o que mais parecer importante ao universo feminino.