“Nem os próprios agressores entendem o que significa assédio sexual”
Lia Bock
15/01/2018 10h42
(iStok)
Não é só Catherine Millet, uma das autoras do manifesto francês apoiado por Deneuve, que não sabe onde acaba a paquera e começa o assédio (como ela mesma afirmou em entrevista à Folha de S. Paulo hoje). A frase do título foi dita por Sofia Vilela, uma das criadoras da cartilha lançada no ano passado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para tirar dúvidas sobre assédio sexual no local de atividade profissional. E é a melhor defesa de que não, o movimento feminista não está indo longe demais e não é paquera que está sendo vista como agressão, ainda é o abuso, o assédio que está sendo visto como paquera. E precisamos esclarecer as coisas.
Um dado importante é que hoje, no Brasil e no mundo, ainda vemos uma grande subnotificação de ocorrências de assédio (e também de estupro). Isso significa que muitos casos ainda estão acontecendo por aí sem que se faça o registro (a queixa) formal. Por vergonha, medo e também pela forma despreparada de como a polícia trata a vitima, muitas mulheres optam por não denunciar. Isso não significa que os casos não estejam ocorrendo ou que foram menos traumáticos. Explicita apenas a necessidade de seguirmos martelando firmes na tecla de que essas vítimas não estão sozinhas e que é preciso coragem para falar.
Na cartilha ainda lemos frases como: "por conta do contexto cultural, sociológico e antropológico de nosso país, a conduta de assédio sexual acaba por não ser investigada nem punida pelas empresas da forma que se faz, por exemplo, com faltas cometidas contra seu patrimônio, como um furto. Condutas de assédio sexual, quando chegam a ser denunciadas em canais da empresa, são menosprezadas e relegadas como infrações menores". E assédio sexual é crime, é traumático e agressivo, fazer dele um crime menor é deixar vazar o recheio machista de nossas entranhas.
Peguemos os dados sobre assédio, ato obsceno e importunação ofensiva nos transportes públicos da capital paulista. Nos últimos quatro anos houve um aumento de cerca de 850% das denúncias. Isso não significa, de forma alguma, que estamos vendo mais ejaculadores nos ônibus e metrôs, significa, sim, que as mulheres (as principais vítimas) começaram a registrar queixa. Ou seja, o aumento do índice é algo positivo. Significa que estamos vendo o efeito dessa campanha mundial ao qual os críticos combatem.
Isso porque hoje existem ongs, grupos e ações públicas que jogam o assunto na rede e derrubam o tabu em torno dele. Lembremos da criação do vagão rosa no metro. Quando foi anunciado ele gerou a ira de muitas mulheres. Porque confinar as vítimas num vagão especial, deixando os agressores livres, é um absurdo, praticamente a negação do problema e novamente a penalização da vítima, que para estar segura precisa recorrer a um único vagão. Mas houve quem achasse a criação do vagão rosa muito civilizada, gente que não entendeu (ainda) o que querem as mulheres.
Veja, ninguém aqui tem interesse em taxar paquera de assédio ou jogar puritanismo no flerte. Ao contrário, os movimentos feministas brasileiros são, no geral, bem libertários, querem o direito à saia curta, ao pole dance, às dancinhas de funk e ao sadismo e ao masoquismo. Queremos liberdade para um jogo consensual e com direitos iguais. Mas infelizmente estamos muito longe do fair play almejado. Ainda vemos os homens usarem sua força e os princípios de uma sociedade machista para constranger sexualmente as mulheres.
A luta não é contra os homens é contra o machismo e contra os abusos. Por isso devemos falar sobre assunto, discutir o que é assédio e o que é violência. No dia em que estiver claro para todos o que é paquera e o que é assédio não vai ter manifesto pedindo o direito de importunar e quem sabe, poderemos discutir coisas que de fato fazem sentido, como por exemplo os linchamentos virtuais movidos por vontade de vingança e as acusações infundadas que pegam carona num assunto tão sério. Mas não devemos jamais traçar uma linha limite que sirva de escudo para os abusadores ou que nos remeta àquela época em que uma mulher violada no metrô ia pra casa calada ou pensando que o tal vagão rosa era a única solução.
Sobre a autora
Comentarista na CNN Brasil, a jornalista Lia Bock começou a blogar em 2008 no site da revista "TPM", onde foi também editora-chefe. Passou por publicações como "Isto É", "Veja SP" e "TRIP". É autora dos livros "Manual do Mimimi: do casinho ao casamento (ou vice-versa)” e do "Meu primeiro livro", ambos editados pela Companhia das Letras. É mãe de quatro filhos e pode ser encontrada no Instagram @liabock e no Twitter @euliabock
Sobre o blog
Um espaço para pensatas e divagações sobre notícias, sexo, filhos, coração partido, afetações apaixonadas e o que mais parecer importante ao universo feminino.