Quem tem medo do aborto legalizado?
Lia Bock
09/11/2017 12h10
(iStock)
A votação da PEC 181 ontem na CCJ foi sim um retrocesso, mas não é o fim de linha, não é o fim da luta. Primeiro porque ainda precisa ser aprovada na Câmara e no Senado. Segundo porque esses senhores devidamente apegados às suas religiões podem apagar o direito, mais jamais apagarão a consciência adquirida. Nossa consciência.
Desde 2013 um levante feminino tem tomado o Brasil. Redes de apoio para direitos e acolhimento surgiram. Tem documentário, pesquisa, livro e muito material que embasa nosso discurso e isso, lei nenhuma tira nós.
Nossa resistência incomodou. Nossa noção de direitos cutucou e os avanços conseguidos a duras penas provocaram estes senhores que preferem ver a mulher como um apêndice do homem, aquela que manda em casa – e só em casa.
É muito triste ver essa emenda bizarra que criminaliza o aborto até em caso de estupro ser acrescentada a uma proposta de aumento da licença maternidade para bebês prematuros. É muito triste acompanhar o desmonte dos hospitais que fazem aborto legal (que hoje no Brasil se dá em caso de bebê anencéfalo, estupro e risco de vida da mãe). É muita conquista descendo pelo ralo. Mas não é o fim.
No livro Calibã e a bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva (ed. Elefante), a italiana radicada nos EUA Silvia Federici, expõe desde os tempos do feudalismo como as conquistas femininas sempre geram reações que visam conter os direitos, o avanço e a independência da mulher. O texto é fruto de uma pesquisa de 30 anos e de uma clareza estupenda: a gente conscientiza, eles reagem. A gente conquista, eles reagem.
É exatamente isso que está acontecendo agora. Esta bancada da bíblia não parou pra pensar, e muito menos pesquisar, nos efeitos reais da proposta que restringe o aborto já legalizado. Sabe quem são as mulheres que fazem aborto por gravidez decorrente de estupro? Em sua maioria são crianças e adolescentes violentadas em casa por pais, padrastos e parentes. Dá pra ver o tamanho da injustiça? Se aprovada a lei, essas garotas estarão sendo violadas duas vezes. Uma no ato do estupro e outra na impossibilidade de fazer um aborto e seguir a sua vida – ou o que resta dela.
Tenho certeza que não é contra essas meninas que a CCJ está pregando. É contra as conquistas das mulheres no geral. É contra uma conscientização por direitos. Só que para isso, não tem lei, não tem igreja, pastor ou juiz que chegue.
Vai ficar mais difícil, claro. O caminho que já parecia mais curto, limpo e menos íngreme torna a se complicar, mas a marcha segue, e seguirá, queiram estes senhores ou não.
Próximo passo: barulho e pressão na câmara. Passeata, reportagens, capa de revista, discussão em programa de TV, textão no Facebook, conversa na mesa de almoço no domingo, discussão na faculdade, vídeo no YouTube, audiência na ONU. Lutamos pra chegar até aqui e é daqui que sairemos para mais essa luta. Porque para ter consciência não precisamos de aprovação ou lei.
Sobre a autora
Comentarista na CNN Brasil, a jornalista Lia Bock começou a blogar em 2008 no site da revista "TPM", onde foi também editora-chefe. Passou por publicações como "Isto É", "Veja SP" e "TRIP". É autora dos livros "Manual do Mimimi: do casinho ao casamento (ou vice-versa)” e do "Meu primeiro livro", ambos editados pela Companhia das Letras. É mãe de quatro filhos e pode ser encontrada no Instagram @liabock e no Twitter @euliabock
Sobre o blog
Um espaço para pensatas e divagações sobre notícias, sexo, filhos, coração partido, afetações apaixonadas e o que mais parecer importante ao universo feminino.