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Lia Bock

A versão da estagiária Melissinha sobre assédio em jornal de Brasília

Lia Bock

15/09/2017 04h00

(Foto: Getty Images)

Na última segunda-feira (11), o jornal Correio Braziliense publicou uma crônica sobre a chegada de uma estagiária à redação. Na história, a jovem, identificada como "Melissinha" , sofre várias situações de assédio – tudo narrado em tom de deboche e machismo pelo autor do texto. Resolvi contar essa mesma história, me colocando no lugar da Melissinha. Seria mais ou menos isso:

"Oi, o meu nome é Melissa. Há pouco tempo entrei em um estágio num grande jornal da cidade. Brasília. Estava muito animada com essa vaga, fui indicada por um professor junto com mais outros quatro estudantes. A entrevista foi 'ok', apesar de o editor ter perguntado se eu tinha namorado. Achei estranho, mas deixei pra lá. Ele é mais velho que o meu pai, demorei a entender que era um xaveco. No dia seguinte ficou bem claro: ele ligou pra dizer que o emprego era meu, começou a me seguir no Twitter e curtiu várias fotos no Insta.

Logo no primeiro dia já percebi que a macharada ali era foda. Parecia que nunca tinham visto uma mulher na vida. Todos de aliança grossa no dedo e dando risadinha de adolescente para vídeos de squirt falso no WhatsApp. Zzzz…

Não demorou uma semana para os babacas começarem a pesar na minha. Era um tal de chocolatinho pra cá, cafezinho pra lá, que tive que inventar um namorado para ver se eles me deixavam em paz. Teve um pobre coitado que chegou a elogiar o meu decote. 'Amor, isso é uma gola canoa, tu nunca assistiu uma cerimônia do Oscar na vida, né?', pensei e não disse. Assumi a tática do sorrisinho fácil porque afinal, eu estava ali pra trabalhar e sei muito bem que era melhor ter esses boys me amando de longe do que eles me odiando pela patada feroz que duas frases minhas são capazes de dar.

E eu não queria papo com aquela gente. De alguns eu tive dó, de outros eu tive medo. Porque se tem uma merda nessa vida, é ser mulher diante de pretenso macho alfa frustrado. Na segunda semana eu já estava pensando: 'ainda bem que o estágio só dura três meses'. Que merda, né? Quis muito trabalhar ali e tinha tanto a aprender, mas a testosterona machista acabou com meu sonho.

Pouco antes de eu ir embora, um fulano pegou no meu braço e me convidou pra jantar. Editor de política, engomado, liberal, desses que acha que porque cobre o Planalto pode tudo. Mano! Me xinga, me trolla na internet, vaza meus nudes, mas não encosta em mim. Eu disse: 'não, obrigada'. Mas isso feriu seu ego frágil. Essa anta de gravata arrumou um jeito de me botar numa pauta com ele. Disse que precisava de ajuda. E ainda soltou: 'vem arrumadinha, os senadores gostam'.

Fomos no carro dele, apesar de ter um veículo do jornal disponível pra nós. Com uma mão ele pegou na minha coxa, com a outra me puxou pela nuca e disse a que veio. 'Não vou deixar você sair desse carro sem me dar um beijo'. Fervi. Empurrei. Fui embora. Não seria dessa vez que eu entraria como imprensa no Senado – se é que tinha uma pauta lá.

No dia seguinte, fiz uma queixa formal no RH. Sabe o que disseram: 'ah, fulaninho, sempre aprontando'. Aprontando? Isso é assédio. Chorei no ônibus voltando pra casa. Que bosta de lugar era aquele? Nem na obra (meu pai é empreiteiro) vi mulher ser tratada desse jeito. Aliás, pedreiro são gentlemen comparados com essa estirpe de jornalista.

Pra coroar a história, uma colega de redação me liga no dia seguinte para 'dar uma força' e me recomenda colocar panos quentes. Mina, acorda. Hoje sou eu, amanhã é você!

Ontem foi meu último dia. Saí de lá rezando pra esse sujeito morrer lentamente com câncer no cérebro. Aos outros, desejo apenas meus mais profundos pêsames pela morte da dignidade."

Depois que escrevi este texto ouvi dizer que existiam outros anteriores mostrando a visão da estagiária Melissa. Pois é, somos muitas "Melissinhas"

Sobre a autora

Comentarista na CNN Brasil, a jornalista Lia Bock começou a blogar em 2008 no site da revista "TPM", onde foi também editora-chefe. Passou por publicações como "Isto É", "Veja SP" e "TRIP". É autora dos livros "Manual do Mimimi: do casinho ao casamento (ou vice-versa)” e do "Meu primeiro livro", ambos editados pela Companhia das Letras. É mãe de quatro filhos e pode ser encontrada no Instagram @liabock e no Twitter @euliabock

Sobre o blog

Um espaço para pensatas e divagações sobre notícias, sexo, filhos, coração partido, afetações apaixonadas e o que mais parecer importante ao universo feminino.

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